segunda-feira, 14 de março de 2011

Não há pachorra!

................ Quando o touro abana os cornos, diz-se que derrota. Depois, quando vai passando pelo capote com que o toureiro o engana, diz-nos o comentador televisivo que aquilo se chama chicuelina, manuelina, derechazzo, natural, etc. e a gente a ver o boi a passar pela capa e mais nada. Quando o bicho, chateado com o seu triste destino de bôbo da praça se encaminha desinteressado de faenas, para as tábuas, diz-nos o aficionado comentador que mostra crença natural e falta de trapio, num puxar de orelhas ao ganadero, que não é um lavrador qualquer e sim um dom doutor e de sangue azul . E por aí fora…

Falei-vos destas detestadas coisas taurinas, não porque me interessem minimamente mas porque são um bom exemplo de como os jargões técnicos com que as elites não resistem a enfeitar os seus discursos, os tornam peças autistas de uma inutilidade absoluta, a não ser para masturbatória carícia do inchado ego do autor.

Vem isto a propósito de vinhos e da dificuldade que a esmagadora maioria de nós tem frente às imensas prateleiras e centenas de marcas de vinhos que se digladiam em design, preços e contra-rótulos absurdos, uns auto-elogiantes, outros conversa comercial de treta, outros ainda cheios de notas de prova, referências às técnicas e condições de fabrico absolutamente esotéricas e outras tantas parvoíces que apenas baralham quem os lê na esperança que pudessem ajudar na escolha.
Dantes havia poucas marcas e toda a gente sabia o que bebia. Os vinhos dividiam-se entre os vinhos normais, uns mais caros e cuidados, outros mais vulgares e acessíveis, e os vinhos que se destinavam à elites das provas, que nessa altura ainda não falavam à plebe, Peras Mancas e Barcas Velhas, bebidos pela malta anafada da finança e patos bravos e comentados nos restritos círculos iniciáticos que os próprios preços formavam e cujo acesso restringiam.

Mas os tempos mudaram, os de cima perceberam que havia um imenso mercado cá em baixo para debicar e os de baixo entreviram uns degraus para tentarem provar as delícias proibidas, agora ali à democrática mão de semear, ou assim parecia, dado que o que mais havia era gente que nem nunca tinha tido uma videira num vaso e que metia qualquer coisa numa garrafa cheia de design e a punha à venda a 30€ a ver se pegava; e o certo é que às vezes pegava mesmo, à conta da novel geração espontânea de enocríticos da internet e revistas popularuchas.
A blogoesfera encheu-se de comentadores/críticos que nenhuma revista quis mas que agora podiam gritar aos quatro ventos e à borla o seu “super especializado” jargão enófilo, o tal que ainda se pode ver em muitos contra-rótulos, para deslumbrar a malta, uns estúpidos que nem sabem dizer que são taninos aquilo que nos deixa a língua áspera como se tivesse sido passada a lixa nº 80.
Sempre preocupados em mostrar que o seu educado gosto é bem diferente do gosto de quem apenas gosta de beber vinho pelo bem que ele lhe sabe e não por saber que estagiou 12 meses numa barrica de carvalho Nevers de grão médio e tosta forte, maceração pós-fermentativa em cuba inox a 26ºC e malolática na barrica, mais todos os tiques da linguagem cifrada, pomposa e oca, pretensamente especialista, as penosíssimas e enfadonhas descrições de prova em que cada um se esforça por recordar mais nomes de frutos do bosque e, quando já não há mais, lá vêm as compotas de cereja e de ameixa e aquele subtil sabor, glória de qualquer enólogo que se preze, a mirtilos azuis, mas entre a 3ª e 4ª semana de maturação, se expostos a Sul e o ano for bom… não há pachorra para tanta parvoíce!
A montanha pariu afinal um rato.
Quem (como eu) esperou que fosse finalmente surgir alguém capaz de traduzir os intrincados códigos dos engenheiros do vinho, viu surgir afinal, com uma ou outra honrosa exceção*, uma horda de peralvilhos inchados de sabedoria e importância que, a despeito de andarem a falar para o boneco, na sua ânsia de afirmação pessoal, só conseguiram complicar ainda mais o que já muito complicado era.
Desçam à terra! Percebam que não é desonra nenhuma admitir que um vinho alentejano que vende muito e nem arrepia a língua, pode ser um bom vinho, sem levar logo o epíteto de “fácil”, “redondinho” ou "popular".
Percebam que lá por um viticultor produzir em Portugal com Sirah, Chardonnay ou Pinôt Noir, não se torna um Miguel de Vasconcelos vínico, a atraiçoar as castas nacionais, tratadas com um fervor patético que raia o nacionalismo.
Quando chegamos à temível prateleira, queríamos era recordar que alguém que o tinha provado, nos tinha dito: - Pá, tens aí uma boa pinga, que eu achei que ficava a matar com uns chocos grelhados, se estiver bem fresquinho.” E não “estamos perante um caso paradigmático de malolática incompleta, a fazer supor, no entanto, que podemos esperar deste produto do Eng. Fulano….”. Perceberam?

* Honrosa exceção é, por exemplo, a do Arq. Cupido no seu blog Garficopo, onde se fala de toda a classe de vinhos, um conhecedor experiente que não se importa de dizer, cito: "Já o Syrah é efectivamente muito fácil de gostar e redondinho e diria ainda que é algo guloso. Claro que isso não é defeito nenhum, já que nem todos os vinhos devem ser para um gajo passar uma hora com o nariz enfiado no copo antes de provar".

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Comprar Boas Iscas ou Pequeno Tratado Sobre a Arte Maquiavélica de Vencer Pela Manipulação do Orgulho Alheio (case study).

............. Isca é isca, bife é bife.
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Sendo que uma isca é uma fatia de fígado e um bife de fígado uma fatia de fígado, a diferença vai seguramente estar na dimensão e se perguntarmos qual das três entre as mais comuns que montam o mundo como o conhecemos, iremos verificar que será da espessura que estamos a falar.
E que momentosa diferença!
Tão abissal que um bife pode ir do altíssimo naco por vezes chamado posta, até ao finíssimo escalope, mas uma isca, da de porco do nosso contentamento, se passar a rígida bitola do quase-nada, se se apresentar grossa ou engrossada nalguma parte, passa de imediato de isca a coisa sem nome.
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Estou para aqui a falar-vos destes aparentes despropósitos, que ainda por cima todos conhecem, não por um sadismo qualquer mas porque cortar fígado não é fácil e aos modernos talhantes falta a maior parte das vezes a paciência e o brio para executar tão fina obra numa carne que depois lhes vai valer uns cêntimos.
É que a consistência é mole e escorregadia, a faca deve ser afiadíssima e trabalhar ali a milímetros da mão que acompanha e alisa o trabalho, numa dança de faquir que poucos talhantes estão dispostos a dançar.
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A minha mãe foi uma grande cozinheira, aquilo a que os italianos chamam uma mamma, mas também uma verdadeira naïfe a comprar iscas; a sua fé inquebrantável na bondade do Sr. Saturnino Belo Projecto que respondia ao eterno pedido de – “iscas bem fininhas, Sr. Saturnino, olhe que o meu marido não as come se estiverem grossas!” – e o tratante a virar-se e a exibir um bife na mão e dizer – “olhe esta maravilha, D. Alice, o seu marido não vai ter de se queixar” – e a minha mãe a concordar, levada numa hipnose qualquer a ver finura onde só havia grossura.
Depois, lá em casa, desfeito o feitiço, era vê-la a tentar abrir os nacos com as suas facas e aquilo tudo a desfazer-se. É que em minha casa as facas eram tão rombas que era mais ou menos indiferente verificar qual o lado da lâmina que estávamos a utilizar e quando anos mais tarde eu comecei a afiá-las era ver dedos cortados e pensos rápidos por todo o lado.
Como resultado desta idiossincrasia materna, eu só muito tarde acedi em pleno às amenidades de uma verdadeira isca e do trauma infantil resultou o apuramento de uma técnica poderosa para forçar todos os “Saturninos” deste mundo a vergarem a sua preguiça e indiferença à minha vontade de saborear esta maravilha.
É o trabalho de uma vida de pesquisa e experimentação que aqui hoje vai ficar.
Podemos ordenar um conjunto de regras que, se levadas à risca, lhe vão assegurar um serviço exemplar, uma espécie de Mandamentos da Compra de Iscas:
- Escolha um talho desconhecido. Na verdade não há como velhas confianças e conhecimentos para relaxar o brio profissional; não se esqueça que “santos da casa…”.
- Escolha um talho grande. Nada de lojinhas intimistas de bairro onde pontifica o dono e mais ninguém. Para o que se vai seguir tem de haver “público” do lado de dentro do balcão, no mínimo dois funcionários a atender, melhor se forem 3 ou 4.
- Escolha um talho cheio de fregueses. Isso dar-lhe-á tempo para estudar o terreno, perceber qual dos funcionários vai ser a sua vítima, eventualmente chegar até a saber o seu nome através das conversas que vai ouvindo.
- Não hesite quando chegar a sua vez. Vai actuar e no fim, os aplausos serão umas magníficas iscas.

Escolhido o funcionário/vítima, o que fará de acordo com o que observar dos seus sinais de vaidade pessoal e perícia nos cortes, por esta ordem, resta-lhe esperar a sua vez.
Se a sorte lhe designar precisamente o que tinha escolhido, não dê sinal de si e deixe que lhe passem à frente; o importante é que, quando avançar para ser atendida(o) por outro possa dizer alto e bom som – Ah! Desculpe mas se não se importa eu queria ser atendida(o) pelo seu colega F.., eu espero que ele esteja livre! – esta subversão gera um conjunto indisfarçável de emoções que vão do despeito, à inveja e, é claro, a uma crescente vaidade no escolhido que mal pode despachar o cliente para o(a) atender a si.
Depois é a sua vez, trate-o pelo nome como se já o conhecesse, diga-lhe com o maior dos descaros – "desde aquela vez em que o sr. F… me cortou as melhores e mais finas iscas da minha vida, só mesmo consigo! Não desfazendo nos seus colegas mas, para iscas finas nunca vi mãos como as suas!"
Já está! Agora pode dizer-lhe as baboseiras que quiser que ele já só pensa na finura das iscas que vai cortar; ninguém fica tão acéfalo e bovino como um elogiado, ele vai esfacelar os dedos e transformar a faca numa navalha de barba até o ego lhe rebentar e ele lhe passar para as mãos a matéria prima essencial para esse prato emblemático que é Iscas com Elas.
Não se esqueça de apontar o nome do seu novo escravo-às-ordens, agora a pavonear-se entre os seus pares. Provavelmente irá utilizá-lo de novo.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O Tio Mendes e o Azeite da Cantina

................... Eu tive um tio marinheiro.
De seu nome António Ângelo, ficou no entanto na memória familiar como o Tio Mendes. Digo memória mas, na verdade, nunca o conheci em pessoa visto ele ter morrido uns cinco ou seis anos antes de eu nascer. Essa falta foi, no entanto, amplamente suprida pelas inúmeras histórias da sua viúva e companheira de uma vida, a Tia Lucinda, a das farinheiras que vos contei aqui.
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Gostava de ter conhecido o Tio Mendes, marinheiro.
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Das histórias da tia Lucinda nasceu um tio, talvez mítico, mas seguramente uma figura ímpar e de contornos tão definidos como se toda a vida o tivesse conhecido.
O Tio Mendes havia fugido de casa aos 16 anos, do Porto, e veio alistar-se como voluntário na Marinha, tinha acabado de eclodir a Primeira Guerra Mundial.
Dotado de uma perícia manual e uma capacidade de concentração notáveis, tornou-se um radiotelegrafista de primeira categoria, tendo chegado a ser o único comandante militar da Ilha Graciosa apenas com o posto de sargento, isto em 1930-32.
Homem de convicções fortes e inabaláveis, tinha um tal sentido do dever e da rectidão militares que, sendo ele próprio um republicano laico que abominava Salazar, então nos seus primórdios de ditador, esteve prestes a ser fuzilado pelos revoltosos conhecidos pela Revolta da Madeira de 1931, que fez abortar na Graciosa ao sabotar as comunicações da revolta, num acto que nunca foi reconhecido e que quase lhe custou a vida. Isto apesar desse ódio particular que alimentava por clérigos e por Salazar, por esta ordem, e que só seria igualado em intensidade pelo amor que dedicava ao dever e ao bacalhau.
Contava a tia Lucinda que, após uma refeição mal sucedida, este lhe havia dito que não percebia porque não lhe dava bacalhau e pronto, era tudo o que ele precisava. Decidiu pô-lo à prova e deu-lhe bacalhau durante mais de dois anos, ao almoço e ao jantar, ele sempre impávido e contente.
Depois, quando vencida lhe aligeirou o regime, apenas o ouviu queixar-se "então acabou-se o bacalhau?".
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Deste tio militar e marinheiro ficou que a minha casa era abastecida de mercearias através de uma Cantina da Manutenção Militar e Brigada Naval, não posso precisar se o nome era mesmo assim, mas seria parecido.
Todos os meses, num determinado dia "dava-se a requisição", que era um telefonema para a dita cantina com o rol de compras desse mês, numa cantilena de que eu já sabia as inflexões e pormenores enquanto a minha mãe ia debitando "cinco quilos de arroz carolino, do glaceado, trinta quilos de batatas, dois quilos de macarronete riscado mas não quero da Manutenção, que traz gorgulho, dez litros de azeite de primeira, cinco quilos de açúcar branco" e por aí fora até acabar a lista que se estendia por duas ou três folhas de papel.
Depois, a um dia certo, lá chegava o camião enorme da distribuição, parecia um camião desses das mudanças que antigamente era sempre "Galamas" mas este dizia outra coisa e tinha uma matrícula militar que começava sempre por MM, manutenção militar, tinha-me ensinado o meu pai.
No camião vinha o Senhor Graça e mais outro. O Senhor Graça era sempre o mesmo mas o outro ia variando e não tinha direito a nome que se conhecesse, era o "outro". O Senhor Graça tocava à campaínha e depois gritava lá de baixo "cantina!" que era para abrirmos as duas metades da porta e facilitarmos assim a entrada dos géneros que iam chegando e sendo arrumados, as batatas na tulha, o azeite transfegado da lata enorme em que vinha para a vasilha de minha casa, etc., enquanto a minha mãe ia vigiando a lista e pondo uns vêzinhos à frente à medida que a casa enchia.
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O Senhor Graça, que vi sempre vestido de fato-macaco azul, era como se fosse um velho amigo da família, primeiro era magro e com cabelo, depois foi encorpando à medida que o cabelo desaparecia e parecia um santo antónio quando o vi pela última vez, a "cantina" acabou pouco depois do 25 de Abril.
O Senhor Graça era como que um tio que lá ia uma vez por mês; ficava um bocadinho a conversar e nós íamos sabendo das filhas e dos seus estudos, da mulher e das suas doenças, enfim, da sua vida, alegrias e tristezas, como as de todas as vidas, ele ia mostrando as fotos que trazia na carteira e nós íamos assim conhecendo as duas crianças na primeira comunhão que depois já eram jovens e, no fim, uma já tinha entrado para a Universidade e ele com os olhos brilhantes de emoção, a contar, já com o "outro" a impacientar-se lá em baixo, ao volante do camião.
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Foi o Senhor Graça que contou do azeite.

Um dia a minha mãe disse-lhe, em tom de reclamação que o azeite andava esquisito, nem parecia o mesmo de sempre e foi então que o Senhor Graça passou a voz para o modo baixinho com que se diziam as coisas que as paredes não podiam ouvir e disse que o azeite puro tinha sido proibido em Portugal, agora era, por Lei, loteado com uma percentagem, já não me lembro qual, de óleo de amendoim, dizia o governo que era para não fazer mal à saúde, mas o Senhor Graça, ainda mais baixinho, dizia à minha mãe que havia um ministro ou outra eminência parda "da situação" que tinha um império de amendoins nos campos das colónias, que era preciso esgotar.
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Deve ter sido a minha primeira experiência vivida da "acção dos mercados" na nossa vida e também no nosso prato.
Pouco tempo depois já toda a família achava o azeite que a Gina trazia de Santiago do Cacém, puro e de contrabando, para fazer as suas açordas e sopas de alho alentejanas, um azeite "forte" demais e o óleo entrou assim disfarçado em Portugal.
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Espantoso a sério é que esse episódio tenha sido apagado da memória colectiva. Passou-se com todos nós os que éramos nascidos no início dos anos 60, mas hoje ninguém se lembra, como se tivesse sido passada uma esponja de esquecimento sobre os 5 ou 6 anos em que o azeite virgem de Portugal tinha óleo de amendoim.
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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O Rancho

.......................... O meu prédio era na verdade composto por dois, que faziam uma planta em L com uma escada de serviço e quintal em comum: era o 9 da Damião de Góis e o 43 da Av. Vasco da Gama.
Foi esse o quintal das brincadeiras e aventuras da infância, eu e todos os miúdos dos dois prédios pegados, fazíamos um rancho!
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Como a Vasco da Gama é uma artéria em declive, o 43 acabou por ganhar mais um andar abaixo do rés-do-chão, que não era bem uma cave e cujas traseiras davam para o quintal comum.
Era desse lado do prédio que se encontrava o comércio: a padaria do Sr. Alfredo, que também era exímio pescador nas docas de Pedrouços, a mercearia do Sr. Amadeu que deu depois lugar a uma agencia funerária que ainda lá está mas deixou de ser Funerária do Restelo e passou a ser “lusa” de nome mas é uma multinacional fúnebre e a Taberna do Senhor Pereira, que não se chamava Taberna do Senhor Pereira e sim A Primorosa Nogueirense, Adega e Casa de Pasto, Vinhos e Petiscos, talvez em homenagem a alguma Nogueira nortenha a avaliar pela pronúncia cerrada do proprietário que, lá para a noite, lhe tornava as falas indecifráveis, mercê também de algumas provas profissionais a que tinha de se sujeitar durante a árdua jornada.
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O Senhor Pereira da Taberna era pai do Jorge, marido da gordíssima Mãe do Jorge, cozinheira emérita da Primorosa e cunhado da também gordíssima Tia do Jorge que partilhava com a irmã os comandos da cozinha e dos comeres, do pasto.
O Jorge era bastante abrutado e de mão “leve” quando a amizade eterna dava para o torto e gozava ainda de uma espécie de estatuto de impunidade porque as mães dos outros miúdos não nos deixavam bater no Jorge porque ele tinha uma coisa qualquer no coração, um sopro, diziam, apesar de a gente nunca ter visto nele nada que se assemelhasse a uma fraqueza ou doença, bem pelo contrário.
Doente ou não, o Jorge era o nosso salvo-conduto para esse reino misterioso de sacas da batatas, résteas de cebolas, alhos, chouriços e farinheiras que pingavam lentíssimas gotas de gordura, panelas enormes fumegantes e frigideiras que deitavam labaredas amarelas até ao tecto com um ruído surdo e ameaçador, quando a mãe ou tia do Jorge lhes deitavam vinho numa alquimia luminosa que lhes fazia sobressair as beiças que se torciam em esgares, enxotando dali para fora o Jorge, que ainda ganhava um sopapo e nós todos, que não apanhávamos mas nem por isso éramos poupados à ira das duas megeras.
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A Primorosa Nogueirense era um manancial inesgotável de aventuras, desde o balcão onde reinava o Senhor Pereira, cheio de pratinhos de maravilhas que nós tínhamos visto fazer, os escabeches, os torresmos já montados em broa de milho, com um palito, pires de pickles, bacalhau cru e outras enormidades que os nossos pais bem comportados nem sonhavam ali existirem, como cabeças de carneiro assadas e “pipis” que o Senhor Pereira afiançava serem muito melhores que os da Praça da Figueira, que só tinham patas de galinha, nem umas moelazinhas, nem jidungo lhes punham… os bêbados lá iam comendo os pratinhos salgados e picantes, jogando à moeda e consumindo o que interessava, o vinho das pipas que forravam a parede atrás do Senhor Pereira, vinha de Aveiras de Cima e caía dos camiões para cima de pneus, com grande estrondo, antes de rodarem para o armazém da taberna, que também dava para o nosso quintal.
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Vinha gente de longe para comer o Rancho da Primorosa.
E não se pense que era uma gente qualquer: ao contrário dos comensais humildes do costume, no “dia de rancho” os pequenos compartimentos, alguns com uma só mesa, que constituíam a sala da Primorosa, eram ocupados por uma malta fina e engravatada, chegavam em carros bons que estacionavam no passeio e comia-se nesse dia com toalhas sobre a mesa ao invés do oleado do costume. Nesse dia, já não sei se Quarta ou Quinta, mas era para o meio da semana, nós ficávamos à porta até que a função acabasse, lá para a tarde.
O Rancho, esse começava a ser feito de véspera, com a salga das carnes e o demolho do grão que, muitas vezes, era ainda escolhido bago a bago, para lhe tirarem os “carneiros”, uns bichos que nessa altura eram muito frequentes no grão e no feijão. Nós íamos seguindo as operações através das janelas sebentas e que estavam normalmente abertas para os nossos domínios.
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Claro que, estes anos todos depois, quase 50, não posso afiançar que fosse exactamente esta a receita do famoso rancho da Primorosa Nogueirense, principalmente no que se refere a quantidades; no que se refere a ingredientes, era mais ou menos assim:
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Ingredientes:
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3 cebolas picadas
1 chouriço de carne
1 morcela
800 grs de entrecosto
150gr de toucinho entremeado
3 dentes de alho picado
500 grs de grão de bico
1 chávena de polpa de tomate
vinho branco
2 folha de louro
1 couve lombarda
250 grs de massa cotovelos
1 raminho de salsa
azeite
sal, pimenta e piripiri
caldo de carne
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Preparação:
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Ponha o grão de molho de véspera e salgue o entrecosto cortado aos bocados e o toucinho inteiro com sal grosso.
No dia seguinte ponha o grão a cozer.
Refogue até alourar a cebola os alhos picados o azeite a folha de louro e o toucinho inteiro.
Junte depois os pedaços de entrecosto passados por água para tirar o excesso de sal.
Junte depois a polpa de tomate misturado com o vinho e o chouriço de carne.
Coza a morcela à parte durante 10 minutos
Tape o tacho e deixe suar um pouco, adicione cerca de 2 dl de caldo de carne, para a carne ir estufando em lume moderado.
Se for necessário acrescente mais um pouco de caldo de carne.
Logo que a carne esteja quase cozida, junte a couve lombarda cortada aos bocados e a água de cozer o grão, retire o chouriço e o toucinho que devem estar cozidos e deixe ferver 10 minutos.
Junte a massa mexa e junte mais um pouco da água de cozer o grão ou caldo até cobrir, e deixe voltar a ferver, depois o grão mexa com cuidado e deixe apurar 10 minutos.
Verifique se está tudo cozido, rectifique os temperos e sirva decorado com rodelas de chouriço e morcela e fatias de toucinho.
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Nota: A Primorosa Nogueirense deu lugar a vários outros estabelecimentos de restauração, sem história, e hoje é um restaurante chinês, as janelas para trás substituídas por uma aberturas cheias de tecnologia e de onde nada se vê para o interior, ASAE dixit!
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terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Facadas e Rabanadas


.............................Há poucas coisas mais chatas que o desconsolo de vermos as nossas legítimas expectativas, fundadas em anos de experiência vivida, serem desfeiteadas por um qualquer ilustre chico-esperto, a presentear-nos à força com uma qualquer inovação que ele acha mais in ou alguém lhe disse que agora era assim lá fora, ou que “era bem”.

É assim! Sempre disposto a minar as certezas do nosso descansado imaginário, o chico-esperto nunca descansa no seu afã de parecer novo, fresco (cool), criativo, enfim, insuportável.

Até há pouco, só as torradas, algumas sanduíches e os pães-de-deus eram servidos seccionados; as torradas com dois cortes paralelos e alinhados pela face mais comprida da fatia de pão-de-forma, as sanduíches com o tradicional corte enviezado e as mistas cortadas em diagonal.
Sabia-se com o que se contava!

Até que alguém inventou a moda da facada.
Agora, tudo, mas mesmo tudo, é esfaqueado! Toda a atenção é pouca porque a coisa é automática: mal se pede o bolito, que até pode ser um queque e já lá está a terrível naifa a desfigurar o desgraçado e a tirar-nos toda a possibilidade de comê-lo com prazer, pelo nosso método, que todos temos um método para comer um queque, não é?
Há quem coma primeiro a base seca, depois os 13 bicos estaladiços em tentativas inúteis de divisão simétrica, que 13 é número primo e não se deixa dividir, por fim o cogulo subido do centro, doce e húmido, todo esse gosto deitado a perder pela omnipresente faca.

Eu pensava que tinha visto tudo, depois da horrorosa experiência que foi ver uma bola-de-berlim-com-creme esborrachada por uma faca que a deixa a babar o creme pasteleiro para o pires e seu guardanapo de papel, mas “guardado estava o pedaço”, num sitio qualquer desses todos iguais dos centros comercias, no caso o Dolce Vita Saldanha, a mostrar que há sempre a possibilidade de piorar, mesmo aquilo que já é superlativamente mau: no meu prato apareceu um bolo-de-arroz despido do seu papel lateral, que jazia ali ao lado talvez a avalizar a autenticidade do bolo, esse cortado ao meio verticalmente, as plaquinhas de açúcar do topo todas desfeitas…

Agora invento técnicas para ser eu a desfeitear o chico-esperto do lado de dentro do balcão, digo-lhe logo – Olhe, queria uma bolinha mas inteira porque estou cheio de pressa e tenho de ir comê-la para a rua – isto para escapar ao olhar recriminatório do outro, a dizer – mas que saloio é este que quer a bola inteira?- e lá saio para a rua de boca cheia para o chico-esperto ver que era verdade e para enfrentar então a reprovação geral da multidão que me vê com a boca atafulhada de pecado e que, depois de um breve exame ao conjunto, faz aquele ar dietético-comiserativo de quem sabe muito bem onde acabam por assentar as bolas-de-berlim-com.-creme comidas pela rua fora

Eu tenho estado para aqui a falar de bolos mas a praga é geral: corri Lisboa para encontrar um pão-de-forma não fatiado, que desse para fazer umas rabanadas de jeito, para o Natal, não aquelas farripas magricelas feitas pela bitola das fatias de 8 mm do panrico e quejandos e que, agora, alguém acha que todo o honrado pão-de-forma deve ter.

Ingredientes:

1 Pão de Forma
1 litro de leite gordo
6-8 ovos
Açúcar e canela

Preparação:

Para poder disfrutar do sabor único de uma rabanada à antiga, deve esquecer os métodos rápidos e fáceis do mono-banho que se abateram há alguns anos, qual shampoo 2 em 1, sobre este doce tradicional.
Aqueça bem o leite mas sem deixar ferver e adoce-o com 3 colheres de sopa de açúcar.
Ponha-o num prato fundo, corte o pão (que deve ser duro) em fatias grossas, bata os ovos noutro prato e ponha ao lume uma frigideira com 1cm de óleo ou azeite refinado.
Embeba bem o pão no leite quente, depois no ovo e frite-o dos dois lados, virando só quando o lado de baixo estiver dourado.
Disponha numa travessa e polvilhe generosamente de açúcar e depois, de canela.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

CUBA LIBRE !

.....No início dos anos 70 foi uma bebida da moda.

Criada no fim do Sec.XIX durante a guerra Hispano-Americana (1895-1898) por um grupo de soldados num bar de Havana, este cocktail havia de se popularizar em todo o mundo, mercê talvez do seu sabor original, mercê provavelmente do seu nome que, após a revolução de Castro, havia de tornar este cocktail numa coisa quase subversiva em muitos lugares do mundo, Portugal inclusive, pois claro.

No início dos anos 70, eu, como a maioria dos estudantes, filhos adolescentes da classe média com uma guerra agendada no horizonte próximo, era um candidato a vanguarda da classe operária que, apesar de não conhecermos muito bem, sabíamos que existia lá para as bandas do Barreiro e, mais que não fosse, lá íamos fazendo a nossa revolução etílica através de umas bebedeiras vanguardistas-proletárias de Cubas Libres!

Pegada às piscinas da Praia das Maçãs, existia e penso que ainda exista uma discoteca-bar, na altura chamava-se “boîte”, de seu nome “Concha”, onde a juventude das noites da costa sintrense ia muitas vezes desaguar até de manhã.
Ali juntava-se gente de muitas origens, desde uns “índios” motoqueiros dos subúrbios lisboetas, a nossa malta que era a gente das praias, Magoito, Azenhas, Maçãs, Praia Grande, Mucifal, Fontanelas e, de vez em quando uma outra tropa mais graúda, gente das touradas e de forcados, uma elite abrutada e confiante na impunidade dos seus desacatos, que não eram poucos.

Naquele tempo a animação era feita ao sabor da noite, que ainda não havia os animadores profissionais de hoje e, naquele dia fez-se a eleição democrática da bebida preferida da Concha. Toda a gente escreveu o seu voto nuns papelitos que o barman arranjou, recolheu-se a votação e coube-me a mim, sei lá porquê, fazer o escrutínio.

Seriam talvez uns 50 ou 60 votos que eu fui contando e as posições cimeiras estiveram renhidas até ao fim, ora vencia o Gin Tónico, ora estava à frente a Cuba Libre. Por fim o Gin ganhou por um ou dois votos mas eu não resisti à ideia de gritar bem alto um subversivo “Viva Cuba Libre” e, com a legitimidade revolucionária e superioridade moral que a minha militância vanguardista me conferia, decidi torcer a votação e proclamei bem alto a vitória do cocktail cubano.

Aquilo deu origem a grande festa e a uma rodada de Cubas Libres por conta da casa e eu lá fiquei com o meu segredo bem guardado, nunca mais vi os papelinhos dos votos, até que, à saída, quando me encaminhava para a minha motoreta em que ia regressar a Magoito, lá estavam à minha espera três dos tais dos touros, chamavam-lhes os Zoios, nunca soube se eram mesmo da família do toureiro da Praia das Maçãs ou era alcunha, mas o certo é que tinham os meus “votos” nas mãos, parece que os tinham conferido e eu só saí dali depois de uns valentes sopapos, enfim, foram mais na alma que na carne, umas nódoas negras e um olho de goraz que tive de explicar depois, lá em casa, com uma mentira qualquer em que os meus pais fingiram mais uma vez acreditar.

Dois ou três anos depois, quando por cá já se podia gritar Viva Cuba Libre à vontade, eu já sabia que Cuba, afinal, não era assim tão livre como eu julgava, lá na Ilha até tratavam o cocktail, entre eles e em voz baixa, por la mentirita e, de qualquer maneira, eu nunca gostei realmente de bebidas que levassem Cola.

Ingredientes:

6 cl de Rum cubano
4 cl de sumo de Limão verde ou lima
15 cl de Coca-Cola
Gelo

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Caiu o Mundo

Tinha eu cinco anos quando o mundo me caiu em cima!

Isto é algo que acontece a todos, uma ou outra vez na vida, mas normalmente lá mais para a frente quando já se tem as costas mais largas, para aguentar, que o peso do mundo ainda é razoável.
Mas aos cinco anos, garanto-vos que é esmagador!

Eu tive a sorte de ficar em casa até chegar a altura de começar a escola.
Pude assim aprender a ler muito antes do tempo a isso destinado e tive acesso a um manancial de informação que me veio a acompanhar pela vida e que jamais lamentarei.
Os dias eram passados em brincadeiras com as minhas irmãs e miúdos vizinhos do prédio da nossa infância, onde, à minha medida, se desenrolava um mundo proibido à estatura adulta, onde nós, os putos, nos movimentávamos com ligeireza, as despensas escuras, armários, cestos de roupa suja e lavada, baixos da cama e de mesas e, a minha "casa" mais querida, a parte inferior da máquina de costura Singer da Tia Lucinda.

Foi debaixo da velha Singer que aprendi a ler.
A Tia Lucinda ia acompanhando os meus progressos na aventura das letras enquanto alinhavava, tirava pontos, mudava botões e colchetes, enfim, costurava, que era actividade diária numa casa, nesse tempo em que não tinha ainda sido inventado o pronto-a-vestir e em que toda a roupa era feita.
A mais fina, de sair, fazia-se no alfaiate ou na modista, as mais simples e os arranjos, faziam-se em casa, onde todos os dias havia fundilhos ou joelheiras para pôr, punhos e colarinhos para "virar", baínhas, remendos, cerzidos, transformações, passagens de roupa entre os irmãos que iam crescendo e de pais para filhos, numa cultura de aproveitamento, reparação e reciclagem que hoje nos é totalmente estranha num sistema organizado para o "usa e deita fora".

A costureira de serviço era a Tia Lucinda, que além das habilidades normais numa costureira caseira da época, sabia ainda "cortar calças de homem", tarefa só ao alcance de algumas iniciadas.
De manhã, antes de iniciar as tarefas de costura, havia normalmente uma espécie de reunião com a minha mãe onde se discutiam as prioridades e opções em relação ao que se faria a cada peça.
Eu ia ouvindo tudo, lá no meu esconderijo secreto, sobre o pedal da máquina, ao lado da grande roda metálica por onde passava a correia de couro que transmitia o movimento aos maquinismos, lá em cima, nessa altura ainda não tinha sido instalado o motor.

O universo era pequeno numa casa.
Se se falava ali do "rapaz", claro que era eu, o único macho que ai vivia durante o dia, além de que ao meu pai ninguém se atreveria a tratar por "rapaz".
- O que é se faz então ao rapaz?- perguntou a minha tia, casualmente, no meio da conversa de costura com a minha mãe - O melhor era cortar-lhe as pernas - respondeu candidamente a minha mãe, achando que era o melhor destino a dar a umas calças a que eu tinha rasgado os joelhos, transformando-as em calções.

Rapaz era eu e pernas são pernas! Aterrado perante a medonha transfiguração da minha própria família protectora nos mais malvados carrascos, senti pela primeira vez o horror, o pânico, o que sente o porco na mesa de matança ao ver a faca, a minha tia de tesoura na mão... chorei de pavor e impotência perante o ar aparvalhado da minha tia e da minha mãe, a pensarem que me havia entalado na grande roda de ferro ali ao lado.

Isto deu história para uns dias e, anos depois ainda se contava como coisa curiosa, mas o mundo nunca mais foi o mesmo para mim, a confiança cega morreu ali para sempre e nunca, mas mesmo nunca mais, voltei a brincar debaixo da máquina de costura Singer, uma armadilha mortal no quarto de costura.