segunda-feira, 26 de outubro de 2009

CUBA LIBRE !

.....No início dos anos 70 foi uma bebida da moda.

Criada no fim do Sec.XIX durante a guerra Hispano-Americana (1895-1898) por um grupo de soldados num bar de Havana, este cocktail havia de se popularizar em todo o mundo, mercê talvez do seu sabor original, mercê provavelmente do seu nome que, após a revolução de Castro, havia de tornar este cocktail numa coisa quase subversiva em muitos lugares do mundo, Portugal inclusive, pois claro.

No início dos anos 70, eu, como a maioria dos estudantes, filhos adolescentes da classe média com uma guerra agendada no horizonte próximo, era um candidato a vanguarda da classe operária que, apesar de não conhecermos muito bem, sabíamos que existia lá para as bandas do Barreiro e, mais que não fosse, lá íamos fazendo a nossa revolução etílica através de umas bebedeiras vanguardistas-proletárias de Cubas Libres!

Pegada às piscinas da Praia das Maçãs, existia e penso que ainda exista uma discoteca-bar, na altura chamava-se “boîte”, de seu nome “Concha”, onde a juventude das noites da costa sintrense ia muitas vezes desaguar até de manhã.
Ali juntava-se gente de muitas origens, desde uns “índios” motoqueiros dos subúrbios lisboetas, a nossa malta que era a gente das praias, Magoito, Azenhas, Maçãs, Praia Grande, Mucifal, Fontanelas e, de vez em quando uma outra tropa mais graúda, gente das touradas e de forcados, uma elite abrutada e confiante na impunidade dos seus desacatos, que não eram poucos.

Naquele tempo a animação era feita ao sabor da noite, que ainda não havia os animadores profissionais de hoje e, naquele dia fez-se a eleição democrática da bebida preferida da Concha. Toda a gente escreveu o seu voto nuns papelitos que o barman arranjou, recolheu-se a votação e coube-me a mim, sei lá porquê, fazer o escrutínio.

Seriam talvez uns 50 ou 60 votos que eu fui contando e as posições cimeiras estiveram renhidas até ao fim, ora vencia o Gin Tónico, ora estava à frente a Cuba Libre. Por fim o Gin ganhou por um ou dois votos mas eu não resisti à ideia de gritar bem alto um subversivo “Viva Cuba Libre” e, com a legitimidade revolucionária e superioridade moral que a minha militância vanguardista me conferia, decidi torcer a votação e proclamei bem alto a vitória do cocktail cubano.

Aquilo deu origem a grande festa e a uma rodada de Cubas Libres por conta da casa e eu lá fiquei com o meu segredo bem guardado, nunca mais vi os papelinhos dos votos, até que, à saída, quando me encaminhava para a minha motoreta em que ia regressar a Magoito, lá estavam à minha espera três dos tais dos touros, chamavam-lhes os Zoios, nunca soube se eram mesmo da família do toureiro da Praia das Maçãs ou era alcunha, mas o certo é que tinham os meus “votos” nas mãos, parece que os tinham conferido e eu só saí dali depois de uns valentes sopapos, enfim, foram mais na alma que na carne, umas nódoas negras e um olho de goraz que tive de explicar depois, lá em casa, com uma mentira qualquer em que os meus pais fingiram mais uma vez acreditar.

Dois ou três anos depois, quando por cá já se podia gritar Viva Cuba Libre à vontade, eu já sabia que Cuba, afinal, não era assim tão livre como eu julgava, lá na Ilha até tratavam o cocktail, entre eles e em voz baixa, por la mentirita e, de qualquer maneira, eu nunca gostei realmente de bebidas que levassem Cola.

Ingredientes:

6 cl de Rum cubano
4 cl de sumo de Limão verde ou lima
15 cl de Coca-Cola
Gelo

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Caiu o Mundo

Tinha eu cinco anos quando o mundo me caiu em cima!

Isto é algo que acontece a todos, uma ou outra vez na vida, mas normalmente lá mais para a frente quando já se tem as costas mais largas, para aguentar, que o peso do mundo ainda é razoável.
Mas aos cinco anos, garanto-vos que é esmagador!

Eu tive a sorte de ficar em casa até chegar a altura de começar a escola.
Pude assim aprender a ler muito antes do tempo a isso destinado e tive acesso a um manancial de informação que me veio a acompanhar pela vida e que jamais lamentarei.
Os dias eram passados em brincadeiras com as minhas irmãs e miúdos vizinhos do prédio da nossa infância, onde, à minha medida, se desenrolava um mundo proibido à estatura adulta, onde nós, os putos, nos movimentávamos com ligeireza, as despensas escuras, armários, cestos de roupa suja e lavada, baixos da cama e de mesas e, a minha "casa" mais querida, a parte inferior da máquina de costura Singer da Tia Lucinda.

Foi debaixo da velha Singer que aprendi a ler.
A Tia Lucinda ia acompanhando os meus progressos na aventura das letras enquanto alinhavava, tirava pontos, mudava botões e colchetes, enfim, costurava, que era actividade diária numa casa, nesse tempo em que não tinha ainda sido inventado o pronto-a-vestir e em que toda a roupa era feita.
A mais fina, de sair, fazia-se no alfaiate ou na modista, as mais simples e os arranjos, faziam-se em casa, onde todos os dias havia fundilhos ou joelheiras para pôr, punhos e colarinhos para "virar", baínhas, remendos, cerzidos, transformações, passagens de roupa entre os irmãos que iam crescendo e de pais para filhos, numa cultura de aproveitamento, reparação e reciclagem que hoje nos é totalmente estranha num sistema organizado para o "usa e deita fora".

A costureira de serviço era a Tia Lucinda, que além das habilidades normais numa costureira caseira da época, sabia ainda "cortar calças de homem", tarefa só ao alcance de algumas iniciadas.
De manhã, antes de iniciar as tarefas de costura, havia normalmente uma espécie de reunião com a minha mãe onde se discutiam as prioridades e opções em relação ao que se faria a cada peça.
Eu ia ouvindo tudo, lá no meu esconderijo secreto, sobre o pedal da máquina, ao lado da grande roda metálica por onde passava a correia de couro que transmitia o movimento aos maquinismos, lá em cima, nessa altura ainda não tinha sido instalado o motor.

O universo era pequeno numa casa.
Se se falava ali do "rapaz", claro que era eu, o único macho que ai vivia durante o dia, além de que ao meu pai ninguém se atreveria a tratar por "rapaz".
- O que é se faz então ao rapaz?- perguntou a minha tia, casualmente, no meio da conversa de costura com a minha mãe - O melhor era cortar-lhe as pernas - respondeu candidamente a minha mãe, achando que era o melhor destino a dar a umas calças a que eu tinha rasgado os joelhos, transformando-as em calções.

Rapaz era eu e pernas são pernas! Aterrado perante a medonha transfiguração da minha própria família protectora nos mais malvados carrascos, senti pela primeira vez o horror, o pânico, o que sente o porco na mesa de matança ao ver a faca, a minha tia de tesoura na mão... chorei de pavor e impotência perante o ar aparvalhado da minha tia e da minha mãe, a pensarem que me havia entalado na grande roda de ferro ali ao lado.

Isto deu história para uns dias e, anos depois ainda se contava como coisa curiosa, mas o mundo nunca mais foi o mesmo para mim, a confiança cega morreu ali para sempre e nunca, mas mesmo nunca mais, voltei a brincar debaixo da máquina de costura Singer, uma armadilha mortal no quarto de costura.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

CAPILÉ ou A Morte da Avenca

A Silvina, cujas feições eu já não recordo, ficou como o meu arquétipo da Brites, a célebre Padeira de Aljubarrota, a mulher-de-armas que, no meu imaginário de criança, tinha assado à traição os malvados espanhóis!
A Silvina usava o cabelo grisalho repuxado para trás num carrapito de aspecto pétreo e vinha às Quintas-Feiras, para lavar a roupa que, antes de máquinas e até de detergentes, era tarefa titânica a que se poupava assim a Virgínia que era a empregada de todos os dias.
A “lavagem da roupa” começava, na realidade, logo de véspera, com as operações de preparação da saponária, pela Virgínia ajudada pela minha mãe e pela Tia Lucinda, numa cerimónia que tinha para mim o cunho de magia propiciatória da grande festa da barrela do dia seguinte, toda força e cheiros e águas.
A saponária fazia-se numa grande panela que assumia para mim proporções ciclópicas, de facto era algo tão grande que eu cabia lá dentro, na pequenez dos meus 3 ou 4 anos.
Para dentro da grande panela ao lume, as facas afiadas iam desfiando finas lascas translúcidas e marmoreadas de sabão azul e branco que, a pouco e pouco se desfaziam numa agonia viscosa e fumegante, inundando a casa daquele cheiro a aldeia da roupa branca que hoje é tentado de novo nesses detergentes ditos “sabão Marselha”.

Durante toda a Quinta-Feira, até as cordas estarem cheias de roupa a secar, lá para a tardinha, o tanque da roupa permanecia destapado e a grande avenca cujo sítio era a cobertura de madeira do tanque, era mudada para a cozinha, onde aguardava a hora de voltar, por mais uma semana, a ser a rainha dos vasos de plantas daquela marquise.

Aquela Avenca tinha sido colhida do interior de um poço de Moita de Ferreiros, aldeia em que os meus pais haviam passado férias antes do meu nascimento e era a mais extraordinária que eu algum dia havia de conhecer.
Com as suas grandes frondes de feto de alguma floresta primordial, na ponta das finíssimas hastes negras que a deixavam ondular a qualquer brisa, a avenca transbordava do seu vaso numa enorme bola verde de onde, diariamente, a minha mãe ia retirando todas as “folhas” e pés que iam envelhecendo, para assim estimular a emissão de novos rebentos.
Tudo o se colhia desta avenca era guardado numa caixa de folha que fora de bolachas e que agora era a Caixa do Capilé. Depois, por alturas da Primavera, a minha mãe cortava rente toda a avenca, deixando quanto muito um escasso centímetro junto à terra, era o “corte à escovinha” e então era ver a maravilha de dezenas de rebentos que em poucos dias surgiam, quais esmeraldas peludas todas enroladas e que abriam em novas frondes, quase que se viam a crescer.

O material desse corte, junto ao que durante o ano tinha sido podado, era a matéria prima para a confecção do Capilé.

O Capilé é um xarope de caramelo aromatizado de limão e avenca que, depois de diluído em água gelada faz um refresco espantoso cuja composição, curiosamente, é a mesma da Coca-Cola. Mas só a composição, é claro; o sabor é incomparável! Fazia parte de uma trindade de xaropes/refresco muito comuns em qualquer café e nas casas particulares, Capilé, Groselha e Salsaparrilha.
Para mim, não havia nenhum que chegasse ao capilé, bebida preferida também pelo Eça para acompanhar o bife do Marrare.

Ao dar a sacramental volta pelos meandros virtuais, antes de me pôr a escrevinhar isto, qual não foi o meu espanto por ver que o meu querido capilé estava extinto: em toda a Web, além de gente que se chama ou alcunha Capilé, só há asneiras e confusão, a Bimby diz que capilé é mazagrin, ali que é refresco de café de cevada, o infame xarope de capilé Neto Costa a proclamar-se detentor da tradição…

Aqui fica, orgulhosamente só no universo, a receita do melhor capilé do mundo:

Ingredientes:

3 Kg de Açúcar Amarelo
Vidrado da casca de 3 Limões
Sumo de 2 Limões (facultativo)
50g de Avenca seca
1,5 L de Água do Luso

Preparação:

Passe a avenca seca por água fria para eliminar algum resto de pó, esporos ou terra e ferva-a por alguns minutos em Água de Luso. Deixe a infundir até arrefecer.

Toste o açúcar amarelo no forno (tem mesmo de ser “amarelo” pois o açúcar branco funde e queima sem tostar). Isto faz-se espalhando o açúcar no tabuleiro do forno e levando-o a tostar a superfície no grill ou na parte mais alta do forno.
De minutos a minutos, quando a superfície fica tostada e escura, mexe-se com um garfo de madeira ou espátula e volta ao forno até que todo o açúcar esteja castanho escuro, não só à superfície mas a totalidade.

Junte o açúcar tostado à infusão coada de avenca, mexendo sempre pois tende a fazer um bloco no fundo. Leve ao lume com o vidrado da casca de limão e, se gosta do travo ácido no refresco, com o sumo.
Deixe ferver em lume baixo por cinco minutos, engarrafe de imediato, a ferver, e rolhe bem.

Assim, com a ajuda da grande avenca, se fazia a meia dúzia de garrafas negras que se consumiam ao longo do ano.
Depois, apareceu o primeiro detergente em pó, o Tide!

O Tide (seguido do Omo, Juá e Ajax) representou uma mudança radical na vida das casas: acabaram-se as saponárias e as barrelas esfregadas, a Silvina continuava a vir às Quintas mas a “roupa” deixou de ser o espectáculo alquímico e suado que tinha sido até então.
Já dava tempo para uma pausa para ouvir o folhetim radiofónico, reivindicado na contratação por qualquer mulher-a-dias que se prezasse, uma história de faca-e-alguidar patrocinada pelo novel detergente, que fazia chorar as pedras da calçada e que ficou conhecida, precisamente, por A Coxinha do Tide!

A Silvina foi dispensada quando, lá para 1965, chegou enfim a máquina de lavar.
Numa das suas últimas idas à Quinta-Feira, nunca se soube como, o pacote do Tide “entornou-se” sobre a avenca que, apesar de todos os cuidados e lavagens, amareleceu e morreu dias depois, numa agonia química inesquecível.
Odiei (e acho que ainda odeio) a Silvina por isso, apaguei-lhe as feições da minha memória e assim permanecem, uma mancha branca com cabelo grisalho e carrapito apertado, a matar cobardemente a avenca do capilé.

Depois, até hoje, houve muitas avencas e capilés, mas nenhuma chegou em pujança e carisma à grande avenca do poço de Moita de Ferreiros.

Por vezes, quando não tenho a necessária, faço o capilé com Lúcia Lima.
Mas é outra coisa, claro.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Curto-Circuito

Um dos meus primeiros livros da infância, que ouvi mesmo antes de saber ler e depois li com o deleite das coisas novas e mágicas, foi “O Longo Inverno”, de Laura Wilder, um dos livros que depois daria origem à série “Uma Casa na Pradaria”.
Hoje, quase meio século e algumas centenas de livros depois, o que recordo desse Longo Inverno são episódios desalinhados, porventura os que terei vivido com mais intensidade, a lenha feita de palha torcida, a expedição de trenó em busca do comboio das sementes, a predição do Inverno terrível por um velho índio, a moagem do cereal num moinho de café e, claro, o roubo de trigo por um buraco na parede, a uns irmãos em casa de quem, no meio da fome geral, se faziam enormes pilhas de fumegantes panquecas!

Estas panquecas que eram ilustradas com um desenho por demais elucidativo, tornaram-se num mito que a minha mãe tentava emular em vão, fazendo os mais variados crepes mas nunca “aquelas” suculentas e fumegantes panquecas.
Só em adulto, muitas experiências frustradas pelo meio, já com a mordomia do anti-aderente à disposição, cheguei finalmente às panquecas perfeitas, ou seja, as panquecas do Longo Inverno.

Depois de ter ido viver no monte alentejano, estas panquecas tornaram-se muitas vezes no pequeno-almoço de Domingo, para toda a família.
Foi num desses domingos, enquanto preparava a massa fofa das panquecas, que ouvi distintamente esse inconfundível ruído seco e inquietante de um curto-circuito!
O ruído vinha do exterior, crepitante e irregular, intenso e ameaçador quando se vive no campo e por todo o lado há árvores e ervas secas.
Parei o trabalho culinário, saí para descobrir a origem e depressa percebi que só podia vir do poste eléctrico que sustenta o fio que atravessa o olival, aliás o único sítio onde passava electricidade naquele campo todo.
Não havia dúvida que estava perante uma grave emergência e havia que agir: um telefonema para a Companhia foi o suficiente para convocar o piquete e, durante a hora seguinte, claro que mais ninguém pensou em panquecas, só se tinha ouvidos para o misterioso ruído que nos ameaçava as árvores, a casa, quiçá a vida.

Finalmente, lá chegaram os técnicos, com o humor de quem foi acordado ao Domingo de manhã e mandado ir atrás-do-sol-posto.
- Atão onde é esse curto-circuito? – lá perguntaram à saída do jipe.
- Ali mesmo no poste, ouve? – disse eu apontando a coluna de cimento – tem estado toda a manhã a fazer este ruído.
Os dois homens do piquete entreolharam-se de um modo intencional que eu detectei logo, não sou nenhum parvo, e que interpretei como uma confirmação da minha inquietação e dirigimo-nos todos para junto do poste.

Então, quando estávamos talvez a cinco metros do objectivo, o ruído parou!

Desastre! Era pior que estar na cadeira de dentista e já não saber qual o dente que lá nos levou ou na oficina e o carro ter desistido daquele barulho que esteve a semana toda a fazer… - parece que parou, bom, mas os senhores ouviram bem… agora mesmo estava…- fui dizendo muito enfiado enquanto um dos tipos calçava uns estranhos artefactos de subir a postes, com um ar de peru em véspera de Natal e ia dizendo - na verdade não ouvi nada, mas vamos lá cima ver bem, esteja descansado.
O homem lá subiu o poste com uma agilidade símia, viu, voltou a ver e, finalmente, no silêncio da manhã alentejana, irrompeu de novo o ruído! – Vê? Ele aí está outra vez! – gritei eu, vitorioso.
- É este o barulho? – pergunta lá do cimo o homem-macaco da EDP – Ah! Bom… e desce num instante, sorridente por fim – Não é nada, não se preocupe, só lhe peço que ponha aqui uma assinaturazinha na folha de obra, se fizer o favor.
A folha de obra é o documento que justifica perante a burocracia deles a vinda até aqui e é constituída por três cópias, das quais eu tenho direito a ficar com a última, depois de garatujar uma assinatura no sítio que me indicaram.
Fiquei quase com pena de os ver partir.
É que agora tinham-se transfigurado: as figuras taciturnas de há um quarto de hora eram agora alegres, risonhos, quase hilariantes camaradas que estive para convidar a provar uma panqueca à Longo Inverno, não fosse já tão perto da hora de almoço. Lá se foram, não sem antes me lançarem um olhar amigo que não mais esquecerei.
Enquanto o jipe se afastava devagar, dei uma vista de olhos à folha de papel que me tinham deixado. Lá estava o “motivo da chamada”, curto-circuito exterior e, mais abaixo, na linha assinalada como “Anomalia reparada”, cigarra a cantar!

Nunca pude apurar se os solavancos que o jipe dava ladeira acima, eram fruto dos acidentes do caminho, se das gargalhadas que certamente iam lá dentro.

Comemos as panquecas ao lanche. Fi-las assim e estavam uma delícia.

Ingredientes:

3 ovos
3 colheres de sopa de açúcar
1 chávena de farinha com fermento
1 pitada de sal
50 ml de natas
1 colher de sopa de óleo
Leite q.b.

Preparação:

Separe as claras e bata as gemas com o açúcar até obter um creme esbranquiçado e liso.
Junte a farinha, natas, óleo e cerca de uma chávena de leite e bata tudo com as varas de claras. A consistência deve ser mais líquida que uma massa para bolo e menos líquida que massa para crepes.
Junte por fim as claras batidas em castelo firme com o sal.
Frite numa frigideira de crepes, vire com o auxílio de espátula e sirva quente com o que mais gostar, manteiga, mel, queijo, compota, chocolate fundido, etc.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A Segunda Canção com Lágrimas (M. Alegre)

Meu amigo cantava.
Dizem que cantava.
E de repente quebraram-se nas veias os relógios
onde os ponteiros marcavam vinte e cinco anos.
.
Vinte e cinco navios vinte e cinco mapas
vinte e cinco viagens para sempre adiadas.
Meu amigo quebrou-se como se fosse de vidro.
Ficaram vinte e cinco pedaços de um homem.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Pataniscas de Sardinha

Vi a Morte chegar e vencer, muitas vezes, era ainda uma criança.

Durante as sestas que os adultos teimavam em fazer numa pretensa solidariedade com os miúdos, estes claro que se escapuliam como podiam e o certo é que passávamos as horas abrasadoras do princípio da tarde de Armação de Pera, por ali, na rua que então era ainda mais deserta que o costume naqueles anos.

O lugar de encontro, que todos nós pressentíamos proibido e que, por isso mesmo, nunca era mencionado aos adultos, era o mercado da aldeia onde, fechadas as portas ao público pela hora de almoço, passava a actividade para uma sala nas traseiras onde, de porta aberta, se fazia a matança das reses que seriam vendidas no talho, no dia seguinte.
E que espectáculo era!
Num compartimento sinistro de paredes nuas, excepto as argolas de ferro onde estavam amarradas as reses condenadas à morte, uma vaca dia sim dia não, dois ou três porcos e sete ou oito carneiros e cabras, aguardando o momento em que eram arrastadas até ao centro da divisão onde, derrubadas de modo a ficarem com o pescoço perto de um grande ralo sem tampa que ali havia eram degoladas numa orgia vermelha pelo Senhor do Matadouro, umas a seguir às outras, ficando a morrer num chimfrim de gritos e esperneios cada vez mais fracos, até ao fim.

Nós, os miúdos machos, ríamos em pura bravata, para que ninguém se apercebesse do coração que nos batia descompassado ali mesmo atrás da boca, principalmente as miúdas que também iam e que funcionavam como o alvo das nossas másculas exibições mas que, hipócritas, fingiam tapar os olhos e davam gritinhos quando a faca entrava jugular adentro e o sangue golfava num ímpeto demoníaco, ralo abaixo.

A Morte vê-se nos olhos: no olhar enraivecido do porco, que sabe bem o que o espera e que urra ainda mal vê a faca fatal ao longe, no olhar choramingas e aparvalhado da vaca que pressente que algo está errado mas não sabe bem o quê, no olhar ausente e estúpido de ovelhas e cabras que não percebem nada e ficam a olhar o vazio com os olhos meio abertos, os conhecidos "olhos de carneiro mal-morto". Frangos e galinhas, já estão mortos e ainda voam sem cabeça...

Depois vinham mais facas e grandes serras, ganchos e machados e começava a verdadeira carnificina da esfola, das vísceras, das peles ensanguentadas, até tudo aquilo se transformar nas inocentes peças que iriam parar aos nossos pratos no dia seguinte.
Nós, os putos, embriagados por aquele cheiro doce e acre, sangue, urina, fezes e morte, íamos continuando a ver quem era o mais bravo que conseguia tocar nas tripas fumegantes, enquanto éramos afugentados pelo ali todo-poderoso, senhor da morte e da vida, o Senhor do Matadouro.

O Senhor do Matadouro era um caso de transfiguração e múltipla personalidade: de manhã ele era o afável Senhor do Talho, desdobrando-se em afabilidade entre iscas, bifes e costeletas que iam enchendo as cestas de compras das clientes; à tarde era o terrível assassino que já conhecemos; depois, à noite, era o Senhor Júlio, vizinho da casa ao lado da nossa, alugada à época, dono de um perdigueiro sem cauda e cor de chocolate, o Vaidoso, em cuja cozinha eu passava horas a ver a mulher, D. Mariana, a fazer grandes panelas de banha e torresmos, salsichas e carne para enchidos, que a salsicharia que fornecia o talho era ali na sua cozinha.
Era raro o dia em que não provássemos os petiscos que iam ser o jantar lá em casa. E que belos petiscos.
Com a D. Mariana aprendi sabores novos e inusitados, o polvo seco assado no lume, a rexama, os torresmos feitos ali todos os dias e comidos a ferver num bocadinho de pão, os figos assados e as Pataniscas de Sardinha.

À noite, no calor algarvio, vivia-se ali à porta.
A D. Mariana puxava um banquinho de madeira e ficava ali a fazer renda e a cavaquear com a minha mãe e outras vizinhas, ao fresco da noite, o Sr. Júlio brincava com um netito ainda bebé que ali vinha à noite e que ensaiava os primeiros passos pela mão do avô babado que só nós sabíamos que, no dia seguinte depois de almoço, se transmutaria, qual lobisomem, no terrível matador do mercado.

Ingredientes:

250g Farinha com fermento
2 Ovos
Sal e Pimenta
Salsa picada
Água
Sardinhas bem fritas, em pedaços

Preparação:

Frite bem as sardinhas até elas estarem bem secas e duras. Parta-as em pedaços e reserve.
Faça um polme com os restantes ingredientes, como foi dito aqui, bata bem até fazer bolhas à superfície, misture as sardinhas e frite em óleo quente.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Tajine de Carneiro com Figos (Lost in Translation)

Não há figos como os de Marrocos!

Há muitos anos, ainda no tempo das viagens de mochila, fui com a Maria José até Marrocos. Éramos ambos bem jovens nessa altura e as finanças jovens só permitiam ficar pela borda Norte do país, Tânger, Tetouan, sair pela espanhola Ceuta.
Era Verão e Marrocos é, nessa altura, uma incrível paleta de cores, cheiros e aromas, a despertar apetites urgentes pelas novidades estivais: tâmaras, figos, açafrões, chás, óleos preciosos, tudo se nos ia oferecendo, à compra e ao palato, numa sucessão rápida, regateio após regateio.
No terceiro dia de Tânger, muitos figos entretanto comidos sem lavar, deu-se a catástrofe: fui acometido por uma gastroenterite que me deixou com, além dos sintomas digestivos habituais, uma febre de 40ºC!
Sem sabermos o que fazer, eu delirava no meio da febre, a Maria José foi pedir auxílio no pequeno hotel onde estávamos e, daí a pouco, chegava o médico!
E que médico!
Era um homenzinho sujo que falava francês ainda pior do que eu, com uma maleta que parecia saída de um caixote de lixo.
Sem mais, abre a sua caixinha de Pandora e tira uma seringa e uma saqueta de Aspegic, das orais, que tinha dentro um pó já acastanhado e que se preparava para me injectar, dissolvido num líquido qualquer que vinha num frasquinho.
Lúcido suficiente para perceber que se aproximava a minha hora, não pela gastroenterite mas pela abominável injecção, mas fraco demais para conseguir reagir fisicamente, reuni tudo o que me restava para lhe dizer que não queria um remédio para a febre mas para a doença.
Balbuciei, no meio do delírio, apontando para a saqueta de Aspegic estragado: - “Je suis alergique, j’ai mangé beaucoup de figues”.
Então, perante os meus olhos atónitos, o curandeiro começou a contorcer-se em esgares, um dedo sobre a boca no universal gesto de pedir silêncio, o polegar da outra mão a apontar disfarçadamente para a Maria José, que estava atrás dele.
- J’ai mangé beaucoup de figues , repeti perante as contorções aflitas do "doutor", que aumentaram de intensidade e intenção. “Non, non”, dizia para mim, numa aflição e depois para a Maria José, lá atrás, “il délire, il délire!”.
A Maria José, que não estava a perceber nada daquilo, lá lhe confirmou as prodigiosas quantidades de maravilhosos figos que eu tinha comido e então, de repente, de novo uma mudança total: descontraiu e passou a rir muito, parecia outro. Acabou por passar uma receita de algo que nunca se chegou a aviar e, ao despedir-se, segredou-me que tinha percebido que eu dizia “J’ai mangé beaucoup de filles” ali, à frente da minha mulher.
Acabei por curar-me com um antibiótico que venderam à Maria José, numa farmácia, e no dia seguinte, já estava na rua, de novo e a comer estes deliciosos figos que, frescos, meio passados ou secos, fazem parte integrante e imprescindível da cozinha marroquina. Sobremesas, tajines, compotas, acompanhamentos, tudo leva estes frutos do Mediterrâneo e do deserto.
Um dos pratos emblemáticos e imperdíveis da cozinha de Marrocos é a deliciosa Tajine de Carneiro e Figos, uma experiência gastronómica única e que não mais se esquece.


Ingredientes:

1,5-2 kg de carne de carneiro, perna e costela
500g de figos secos
2 Cebolas picadas
1 ramo de Coentros
1 colher de sopa de sementes de coentro
½ colher de gengibre em pó
½ colher de pimenta preta
½ colher de Curcuma
½ colher de canela moída
4 colheres de sopa de óleo de Argão (ou Azeite)
Sal q.b.

Preparação:

Ponha a carne, a cebola, a gordura e todos os temperos numa panela, cubra com água e deixe cozer durante 90 minutos.
Lave os figos e coza-os em vapor durante 10 minutos.
Sirva os figos sobre a tajine quente.

Nota: Este prato tradicional é acompanhado por chá de menta e, por vezes, com cuscuz cozido em vapor.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Os Risottos de Umberto Eco

“Perguntei-lhe apenas que direcção tínhamos tomado:- Solara fica na fronteira entre as Langhe e o Monferrato, é um sítio lindíssimo, vais ver, paizinho. …/… via sinais que me falavam de cidades conhecidas, Turim, Asti, Alexandria, Casale. Depois entrámos em estradas secundárias …/… evidentemente tínhamos penetrado no Monferrato…/… estávamos a entrar noutro mundo, numa festa de vinhas ainda jovens.
… a determinada altura vi uma placa que dizia Mongardello. Disse: - Mongardello. Depois Corseglio, Montevasco, Castelleto Vecchio, Lovezzolo, e chegamos, não é?”

É assim, com o seu estilo poderoso e cativante, que Umberto Eco começa a viagem de Yambo pela estranha amnésia que o afecta. É uma viagem pelo seu passado, uma viagem pela história recente de Itália e os seus fantasmas, pela banda desenhada da sua infância, na “Misteriosa Chama da Rainha Loana”, que a Difel publicou entre nós em 2005.

Eu sou um bom “leitor”, mas incuravelmente naïf . Lembro-me como se fosse ontem do modo como, ainda há pouco na adolescência, vivi As Minas de Salomão, que alguém escreveu e Eça de Queiroz traduziu de modo tão magistral que o tornou uma obra-prima. Tremi então de raiva impotente por um tesouro ingloriamente perdido. De então para cá, os (bons) livros teimam sempre em pregar-me a mesma partida ao fazerem-se vividos e reais, ficção a baralhar-se com informação.

Nunca duvidei da existência destas vilas e aldeias de Eco e, como ia passar as férias por Itália, reservei um dia de paragem entre Milão e Turim, para visitar este roteiro literário que me seduzia e que queria ver com os meus olhos.

Cheguei a Casale, não liguei ao primeiro sinal “estranho” que era ninguém saber onde eram todas as outras localidades – “Disparate! São pequenas aldeias que nem vêm no mapa” – dizia convicto enquanto percorria quilómetros sem fim, entre as Langhe e o Monferrato, na esperança de avistar as velhas e gastas placas que indicariam Corseglio, Lovezzolo, por fim Solara.
Nada!
Cheguei a Turim já de madrugada, zangado, muito zangado com o pobre Umberto Eco, miserável vigarista que misturava assim, deliberadamente, terras que existem com outras inventadas…

Conheci nesse dia, por compensação do esforço vão ou prémio “o mais ingénuo do ano”, os Carnaroli, Baldo, Vialone anão, Balilla, Arbório, Roma, se calhar ainda outros que já esqueci, por não ter comprado toda a incrível variedade de arrozes especiais para risotto, que ali crescem nas margens do Pó e nunca chegam às prateleiras estrangeiras.
Nunca os teria conhecido se não tivesse saído da grande auto-estrada que liga Milão a Turim e ido à procura da Solara de Eco.

Obrigado Umberto!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

II Série - Cá vamos nós!

Não gosto de remakes e sequelas.

Claro que há honrosas excepções: aquele filme, peça ou livro que, refeitos com o toque do génio, ultrapassaram e por vezes, apagaram da memória os pálidos originais.

Quando, ainda há menos de dois meses, decidi que o Comidas Caseiras chegara ao seu fim natural, estava realmente decidido a pôr um ponto final nessa série, que foi a minha estreia, não só nos blogs de comidas e gastronomia como na própria Blogosfera.

Se hoje aqui volto e reacendo este lugar algo estranho em que, mais que de comidas, se fala de uma vida e das pequenas histórias que a fazem e fizeram, é por causa totalmente acidental e fortuita: Instalei a 19 de Janeiro um contador de visitas no Outras Comidas.
Dias depois, surpreendido pelos números aí atingidos e que eu nunca imaginara - na realidade já acharia um décimo muito bom!- decidi instalar aqui também um contador.

Isto passou-se há onze dias e, desde então, percebi, totalmente estupefacto, que fui visitado neste blog "morto" há quase dois meses, por mais de 2700 vezes!

Bom, se todos os dias há duzentas e cinquenta pessoas que acham que ainda vale a pena passar por aqui, não as irei defraudar com o meu silêncio.
Claro que não poderei manter regularidades passadas: a minha mudança do "morno" Alentejo para o rodopio de Lisboa, acarretou um aumento natural da minha actividade profissional como hipnoterapeuta e auriculoacupunctor, com uma diminuição drástica do tempo livre.

Mas tentarei ir "aparecendo" e, aos poucos, dar-vos mais um pouco de mim, neste "day after".

Até já!